02 julho 2005

os velhos também se abandonam ou a tristeza de estar a mais

verão… praias de areias quentes, a água refrescante do mar, corpos ao sol, as férias merecidas...

aeroporto de Bolonha, duas horas da tarde. à chegada ia contando… um, dois… seis… trinta e oito… faltava apenas uma pessoa, uma senhora que nunca havia visto, sobre quem incidia um pedido de atenção especial.

depois de procurar com os olhos, vi finalmente uma cabecinha branca, de aspecto frágil, que nervosamente mostrava todos os seus documentos a um casal italiano.
gentilmente tentavam ajudar a senhora, falando num português com leve sotaque brasileiro. aproximei-me e perguntei: “Senhora D. Margarida?”
a pobre começou a chorar, perdida em terras estranhas, sem conhecer ninguém, com uma imensa doçura nos olhos.
falei-lhe com ternura, tentando acalmá-la e perguntei pelas suas malas. respondeu-me então: “Minha filha esqueceu-se delas no quarto, só tenho estes papéis.”
compreendi então que qualquer coisa estava errada. pedi-lhe que me acompanhasse e fui ao serviço de bagagens, onde recuperámos os seus haveres.

dirigimo-nos ao autocarro e pedi ao motorista que guardasse as malas. entrei, sem reparar que a senhora não me acompanhara. veio então o motorista, que disse: “ Ela queria entrar para a bagageira…”

meu Deus, pensei. esta senhora está completamente perdida!

Pisa. paragem de hora e meia para visitar o Duomo e tirar fotografias da famosa Torre. à hora combinada estava toda a gente de regresso. apenas faltava aquela senhora. várias pessoas se ofereceram para me ajudar a procurá-la. encontrámo-la a falar com um casal italiano que já estava a ligar para a polícia. ela, de novo chorando, coitadinha. lá fomos então para o hotel em Florença. à hora do jantar, esperei pela Sra. D. Margarida e finalmente apareceu acompanhada por uma jovem do grupo. tinha-a encontrado esperando o elevador, com as malas a seu lado, sem tocar em qualquer botão, como se o mesmo adivinhasse as suas intenções.

compreendi então que a D. Margarida não poderia continuar a viagem, pois corria o risco de continuar a perder-se, ou então era obrigado a andar com ela pela mão, sem poder dar a atenção necessária aos outros membros do grupo.

aliás foi o que aconteceu na visita de Florença, durante a qual me falava de coisas sem nexo, como das “caleches em Sintra, cujos cavalos iam beber água a Monserrate.”

liguei então para Lisboa, onde se contactou a filha, em férias em Espanha, que replicou: “Eu mandei a minha mãe de viagem para poder ir de férias. se devo cancelá-las, quem é que me indemniza?”

depois de alterada a reserva do voo, contratei um carro de aluguer com condutor para levar a senhora ao aeroporto de Bolonha. falei com o motorista, pedindo-lhe que não a perdesse de vista, que me prometeu ocupar-se dela, ajudando-a no check-in. o mesmo que me telefonou no início da noite, preocupado com a próprial senhora, perguntando se ela houvera chegado bem a Lisboa.

à hora que ela era suposta chegar a Lisboa, ligou-me a colega que a deveria receber, dizendo que não tinha aparecido ninguém, embora tivesse uma cartaz bem grande com o seu nome.

estava eu a pensar onde andaria a Sra. D. Margarida, quando recebo outra chamada. era a chefe de cabina do voo em que ela havia viajado, que a encontrara a pé, arrastando a mala, ao pé da rotunda do relógio do aeroporto.
por acaso tinha colocado nos seus documentos, um papel com o meu telefone em algarismo garrafais, não fosse dar-se o caso de ela voltar a perder-se.

pelos vistos, a Sra. D. Margarida estava destinada a ter mais atenção de estranhos do que de quem lha devia dar…

entregue pela hospedeira no balcão da companhia aérea, foi acompanhada pela minha colega até à hora do voo para Faro, onde a filha iria buscá-la. terá chegado bem, segundo esta soube, depois de falar com a filha.

no dia seguinte estávamos já em Assis, quando recebo nova chamada, desta feita com uma voz espanhola do outro lado. era o comissário do posto de polícia de Huelva, que me disse terem encontrado a senhora sozinha, perdida nas ruas da cidade. contei-lhe toda a história e forneci-lhe o número da filha.
disse-me então o comissário indignado: “Voy a contactar esa señora y a darle una paliza, porque lo que hace con su madre aqui es considerado un crime!”

mais não soube da Sra. D. Margarida, mas de cada vez que penso nela, vêm-me ao pensamento meus pais.

será que aqueles que até ao fim de suas vidas nos dão o seu amor, tratam as nossas feridas e enxugam as nossas lágrimas, não têm o direito de ter a nossa atenção e carinho?

seremos tão ingratos a ponto de atirar para o lado quem não consegue acompanhar os nossos passos ao ritmo acelerado dos dias de hoje?

os velhos não se abandonam, não estão a mais. são parte da nossa vida !!

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